Orgulho de ser quem se é: o direito à cidadania de pessoas intersexo

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Termo intersexo é usado para descrever uma série de variações biológicas naturais do corpo. Conheça nesta reportagem a história de Jacob, um bebê intersexo que precisou ter os seus direitos reivindicados pela mãe desde o nascimento. Orgulho de ser quem se é: o direito à cidadania de pessoas intersexuais
“Tocamos a gravidez numa boa, ter um bebê intersexo na minha barriga não foi um problema. Se tornou um problema quando ele nasceu, quando ele veio para esta sociedade que não aceita corpos diferentes”.
O relato é de Thais Emília Campos, psicanalista e presidente da Associação Brasileira de Intersexos (Abrai) e mãe de Jacob, um bebê que nasceu com cardiopatia grave, microcefalia e ambiguidade sexual: no caso dele, o pênis era bem pequeno e não havia testículos. Assista a entrevista no vídeo acima.
Thais Emília e Beto com o filho intersexo, Jacob
Arquivo pessoal
Com essas características no órgão reprodutivo, Thais já sabia que seu bebê era intersexo antes mesmo de Jacob nascer.
Para ela, isso não afetou em nada durante a gestação, a preocupação da família era a saúde vital de Jacob, não a definição de masculino ou feminino. Mas na prática, quando a criança nasceu, em 2016, Thais se deparou com problemas para registrar o filho como intersexo.
Jacob, bebê intersexo que motivou luta da mãe na busca por direitos do filho
Arquivo pessoal
No mês do Orgulho LGBTQIA+, o g1 lança a série “Orgulho de ser quem se é”, com histórias de pessoas trans e não binárias que enfrentam entraves burocráticos no Brasil. Entenda o processo de retificação da certidão e as dificuldades de quem muda de identidade nos atendimentos de saúde, no trabalho, na educação e vida social.
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Falta de documentação e direitos violados
Logo depois que Jacob nasceu, os médicos se recusaram a entregar a Declaração de Nascido Vivo (DNV) a Thais porque não sabiam se Jacob era menino ou menina. Sem esse documento, que é essencial para a certidão de nascimento, a criança ficou cerca de dois meses “sem existir” para o Estado.
“O impacto de ficar sem esse documento foi ele ficar sem a certidão, cartão SUS, CPF; eu fiquei sem a licença maternidade. Meu bebê não teve acesso à cidadania”, relembra Thais, que só conseguiu receber alta após um acordo com o hospital.
Ela explicou que, de acordo com a Lei 12.662 de 2012, que regulamenta a Declaração de Nascidos Vivos (DNV), no campo sexo, é possível registrar a criança com “sexo ignorado” assim que ela nasce.
Jacob, bebê intersexo que motivou luta da mãe na busca por direitos do filho
Arquivo pessoal
“O ‘sexo ignorado’ serve para bebês que nascem com estado de intersexo, que os médicos não conseguem definir se é masculino ou feminino. Com isso, a certidão é emitida para que os direitos daquele bebê sejam garantidos, não sejam violados”.
Thais comentou que hoje é possível emitir a certidão de nascimento de um bebê intersexo ignorando o sexo, mas considera que é preciso ter uma lei específica para esse público.
“Hoje se pode emitir a certidão de nascimento dos bebês intersexo ignorando o sexo, houve uma capacitação para isso. Esses bebês conseguem fazer o RG e a certidão, mas não consegue fazer o CPF. Enquanto não houver uma legislação específica para pessoas intersexo, a gente não vai ter avanços”, explicou Thais.
Jacob não chegou participar de todo o processo da mãe para garantir seus direitos. Com 1 ano, ele morreu em decorrência dos problemas no coração.
A luta de Thais e sua família ecoou até a Universidade de Oxford, na Inglaterra, onde um grupo a procurou para falar sobre Jacob. “Eles me falaram que fomos os primeiros pais no mundo que assumiram publicamente ter um bebê intersexo. Eu fui atrás desse dado e é verdade”.
Thais Emília, Beto e Alexandre posam com uma foto de Jacob em casa, em São Paulo
Fábio Tito/g1
Para a psicanalista, a história de Jacob mostra que é preciso respeitar a diversidade de corpos.
“Quando a gente fala de visibilidade LGBTQIA+, a gente fala de respeito a singularidades, não existe ninguém igual a ninguém, todos nós somos singulares, cada ser humano é único e deve ser respeitado”.
Thais Emília e Beto posam com uma foto de Jacob. A criança, que faleceu com um ano de idade, virou tatuagem na panturrilha do pai
Fábio Tito/g1
Ser intersexo
O termo intersexo é usado para descrever uma série de variações biológicas naturais do corpo. Em algumas pessoas, as características intersexuais são perceptíveis logo no nascimento; em outras, são aparentes até na puberdade.
Uma pesquisa da Organização das Nações Unidas (ONU) estimou que entre 0,05% e 1,7% da população mundial nasce com características intersexuais — o que pode significar até 3,5 milhões de pessoas apenas no Brasil.
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Essas pessoas podem ter alterações hormonais, genitais ambíguos (como no caso de Jacob) e outras diferenças anatômicas, ou ainda nascer com códigos genéticos diferentes do padrão. Um exemplo: o corpo pode ser fisicamente feminino, mas o seu código genético ser XY (X é o cromossomo feminino e Y é o masculino), o que pode afetar o desenvolvimento e a produção de hormônios.
Antigamente, pessoas intersexo eram chamadas de hermafroditas, mas o termo caiu em desuso. Além de ser pejorativo, é associado apenas aos genitais ambíguos ou pessoas que nasciam com os dois genitais, masculino e feminino.
Também colaboraram na produção deste conteúdo: Braulio Lorentz, Guilherme Pinheiro, Marcelo Sarkis, Mariana Mendicelli, Tatiana Caldas e Veronica Medeiros.

Fonte: G1 Entretenimento