Orgulho de ser quem se é: a luta pelo reconhecimento das identidades LGBTQIA+

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Conheça a história de pessoas que enfrentam problemas burocráticos quando decidiram assumir suas identidades LGBTQIA+ na sociedade. Orgulho de ser quem se é: a luta pelo reconhecimento das identidades LGBTQIA+
No mês do Orgulho LGBTQIA+, o g1 lança a série “Orgulho de ser quem se é”, com histórias de pessoas transgênero e não binárias que enfrentam entraves burocráticos no Brasil. Bernardo Gonzales, Lígia Lins de Castro e Vincia Prado relatam a falta de protocolo, treinamento e desconhecimento sobre como atender pessoas que passaram pelo processo de retificação.
Isso, em 2022, quatro anos após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que toda pessoa trans acima de 18 anos tem o direito de solicitar a alteração de nome e gênero diretamente em cartório. Assista as histórias no vídeo acima.
O nome da série surgiu de uma fala do advogado Paulo Roberto Iotti, membro do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS).
“Liberdade é o direito de se fazer o que quer desde que você não prejudique terceiros. É o orgulho de ser quem se é porque não há nada de errado em ser como se é”, defende Paulo.
Ele explica que, depois de mudar os documentos, as pessoas trans ainda passam por “dificuldades burocráticas que não estavam em julgamento quando o Supremo apreciou a questão”. Leia, abaixo, relatos sobre:
A falta de protocolos;
Impacto na falha no atendimento de saúde;
Inviabilidade de retirar documentos;
Violação de direitos;
A necessidade de ter que se provar como pessoa.
A falta de protocolos
“Essa decisão do STF foi muito importante. Foi fruto de muita militância de todos os coletivos de pessoas trans. Mas, ao mesmo tempo, é uma sociedade que não está preparada para lidar com essa situação”, diz o professor Bernardo Gonzales.
Bernardo Gonzales, professor
Fábio Tito/g1
Bernardo é um homem trans. Para ele, a “sociedade é toda pensada para as pessoas cis hetero”, ou seja, falta diversidade na construção da sociedade. Ele afirma que “processos destoam dessa heteronormatividade vão enfrentar problemas burocráticos”.
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A história de Bernardo é mais um exemplo. Após sua transição de gênero, na hora de tirar passaporte, entre os documentos que precisaria apresentar, estava listado o certificado de reservista. Porém, o professor já estava mais velho, e a única solução encontrada pela junta militar foi que ele pagasse uma multa para regularizar a situação. O problema, ele comenta, não foi ter que pagar os R$ 5. A questão é que “essa coisa de não ter protocolo é para absolutamente tudo”.
Outro exemplo citado por Bernardo é a falta de entendimento de que um homem trans precisa de um atendimento ginecológico que tenha acolhimento e cuidado.
“Recentemente, eu fui fazer um check-up executivo associado à empresa que eu estou. Marquei os exames, mas não me perguntaram se eu era uma pessoa cis ou trans. Quando eu recebo o e-mail dos preparativos do exame, está lá: peniscopia* e todos os outros associados a uma pessoa cis, um homem cis”, conta.
Durante o atendimento médico, que ele descreve como “um dos piores” que já fez, Bernardo foi submetido, sem explicação sobre o que estava acontecendo, a uma colposcopia*. “Eu tive aquela sensação de ter sido extremamente invadido”.
“Esses sistemas nos violam de tantas formas que a nossa tendência quase que natural é não fazer esse tipo de exame e não se preocupar com a nossa saúde porque não vai ter profissional que atenda às nossas demandas, e que nos trate com a dignidade que a gente merece”, desabafa.
*Peniscopia: Exame feito no órgão reprodutor masculino que pode identificar lesões ou alterações não perceptíveis a olho nu.
*Colposcopia: Exame feito no órgão reprodutor feminino que pode identificar lesões ou doenças.
Para ele, o respeito com pessoas trans vai além de pronomes. “É preciso repensar protocolos e caminhos de atendimento e tratamento de pessoas trans. Respeitar a nossa dignidade e entender que a gente tem direito a ser quem a gente é, simplesmente”.
‘Nome morto’ e marginalização de pessoas trans
A estudante e produtora de conteúdo Vincia Prado é uma travesti não binária. Antes de fazer a retificação dos seus documentos, ela optava por usar o ‘nome social’ (hoje, seu nome civil). Acontece que ela acreditou que bastava retificar que não teria mais problemas na vida. “Mentira! A gente vai ter problemas sempre”, pondera.
E continua. “Inclusive, eu saí da unidade de saúde sem tomar vacina uma vez porque a enfermeira se negou a colocar meu nome social no meu cartão”.
Vincia Prado, estudante e produtora de conteúdo
Miguel Folco/ g1
São muitos os relatos de pessoas trans que tiveram algum tipo de constrangimento em atendimentos de saúde. De quem está atendendo não estar (ou se sentir) apto para lidar com o grupo ou de sistemas não atualizados que deixam registrado o cadastro antigo — o que Vincia chama de “nome morto”.
“Em qualquer lugar, eu vou na padaria ou em uma instituição, a gente precisa afirmar a identidade. Em outros lugares, o seu nome morto consta no sistema, você tem que solicitar a atualização e fica aquele constrangimento”, relata.
Desde que começou a transição, Vincia entendeu que “estava vulnerável”.
“É muito forte, né? Você acordar todos os dias e entender que você é uma pessoa trans, que você é uma travesti, que você vive no Brasil, reafirmar que meu corpo é político e que eu estou viva”, reflete.
Para Vincia não há escolha senão provar todos os dias quem ela é. E lutar contra um sistema que marginaliza pessoas trans em diferentes áreas.
Sobre o mercado de trabalho, Vincia diz que “a prostituição bate muito” em sua porta. E se choca em relatar que “parece que é a única possibilidade de trabalho para uma pessoa trans, e principalmente para uma travesti”.
E ela não está exagerando. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) apontam que 90% da população trans e travesti têm a prostituição como fonte de renda e alternativa para sobrevivência.
A estudante avalia que se fala muito sobre inclusão e diversidade em processos seletivos. No entanto, uma vez que as pessoas trans entram no mercado de trabalho, não há espaços para incluir, inserir e acolhê-las.
“Não adianta você querer e ter iniciativa e não saber como você vai incluir essas pessoas dentro dos lugares. Então eu acho que precisa de dois trabalhos, tanto o da inclusão quanto o da socialização”, aponta.
Uma pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu publicada no jornal da Unesp em 2021 estimou que 2% da população adulta se identifica como pessoa transgênero ou não binária. Esse levantamento é inédito na América Latina.
Não binariedade como um ato político
“Por que a gente tem que ainda categorizar as pessoas por gênero? “, questiona Lígia Lins de Castro. Reconhecida pelo estado do Rio de Janeiro como uma pessoa não binárie, Lígia não se identifica nem como mulher e nem como homem, o seu gênero é não binárie. E apresenta as suas profissões como professore e veterinárie.
Foi dentro do universo dos pronomes neutros que Ligia descobriu a sua identidade. O maior desafio, no entanto, não foi a descoberta. É ter que comprovar diariamente que ser uma pessoa não binárie é um direito seu que foi legalmente reconhecido. “A partir do momento que você tem documento, isso faz toda a diferença. Para me tornar legitime, eu tive que documentar”, conta.
Lígia Lins de Castro, professore e veterinárie
Marcos Serra Lima/ g1
Sempre com a certidão e a sentença judicial em mãos, fazer uma compra online pode levar dias em contato com a ouvidoria. Assim como participar de editais ou tirar documentos. No caso mais recente, Lígia se viu “obrigada a mentir para a Receita Federal”, uma vez que as únicas opções disponíveis no cadastro do site do Imposto de Renda são os gêneros masculino e feminino.
Para Lígia, fazer a retificação foi um ato político já que o sistema binário é, na sua visão, “para definir papéis sociais”. A binariedade, diz Ligia, está para além de um documento. Está também na forma como as pessoas se comportam e são, hierarquicamente, reconhecidas na sociedade.
Vale lembrar que transfobia é crime. Em 2019, a maioria os ministros do STF votou a favor da determinação de criminalizar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.
Também colaboraram na produção deste conteúdo: Braulio Lorentz, Guilherme Pinheiro, Marcelo Sarkis, Mariana Mendicelli, Tatiana Caldas e Veronica Medeiros.

Fonte: G1 Entretenimento